No dia em que se completam duas décadas sobre o brutal crime de Fortaleza, um amigo de um dos mais famosos criminosos portugueses contou ao DN que “ele teme ser expulso para Portugal quando terminar a pena”.

João Almeida Moreira12 Agosto 2021 — 00:09
A12 de agosto de 2001, Joaquim Mendes, Manuel Barros e Joaquim Martins, de Abiul, região de Pombal, Vitor Martins, de Alportel, Joaquim Pestana, do Seixal, e António Rodrigues, de Ourém, foram agredidos, baleados e alguns enterrados vivos num buraco da cozinha da barraca Vela Latina, na Praia do Futuro, em Fortaleza, no Brasil. Duas décadas depois, Luís Militão, o autor moral de um dos crimes mais bárbaros da história do estado do Ceará, continua a cumprir a pena de 150 anos, 25 por cada vítima, a que foi condenado. Confrontado com a possibilidade de falar ao DN, recusou por sentir “ter o direito a ser esquecido”.
“Ele é ainda o preso mais famoso do Ceará – e esse é o maior drama dele”, disse ao DN uma pessoa que tem acompanhado Militão nos últimos anos e pediu anonimato. “Ele não quer falar à imprensa, está traumatizado com ela, e nem quer que ninguém fale por ele”, explica.
Militão passou os últimos 20 anos nas prisões Instituto Penal Paulo Sarasate, primeiro, e Pacatuba, depois, ambas na região metropolitana de Fortaleza. Uma carta a que o DN teve acesso, escrita pelo punho do português, natural do Barreiro e hoje com 51 anos, descreve a sua principal batalha no momento: “mudar para outra vivência”, isto é, para outra ala ou pavilhão. Na “vivência” onde se encontra, o preso queixa-se da “ociosidade doentia” dos restantes detidos e de não ser “visto com bons olhos por eles” em virtude “da sua proximidade com os agentes penitenciários”.
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Ele teme ser considerado delator pelos outros presos por causa da boa relação mantida com os guardas, depois de ter trabalhado muito tempo na manutenção da prisão, como bombeiro, eletricista e soldador.
o preso queixa-se da “ociosidade doentia” dos restantes detidos e de não ser “visto com bons olhos por eles”
Por outro lado, Militão quer continuar os estudos e na “vivência” em causa, ao contrário da outra, não é permitido levar livros, cadernos ou algo que possa ser considerado recreação para uma cela que excede, em mais de 100%, a capacidade. O “criminoso mais famoso do Ceará” concluiu o curso de pedagogia, fez especialização em gerontologia mas não teve oportunidade de concluir letras – faltam-lhe duas cadeiras.
“Todo o mundo sabe quem ele é dentro da prisão, e isso é terrível”, continua a pessoa próxima de Militão, antes de informar que aquele requerimento do preso foi rejeitado pela direção do estabelecimento prisional. Mesmo num estado com graves problemas de violência – o Ceará regista 45,2 homicídios a cada 100 mil habitantes, a taxa mais elevada entre as 27 unidades federativas do Brasil, segundo conclusões do Anuário da Segurança Pública no mês passado -, “a chacina dos portugueses”, como é conhecida localmente, ainda está na memória da população por causa da crueldade no planeamento e na execução do crime.
Hoje é transmitida uma reportagem da TV Verdes Mares, filial local da TV Globo, com a dona do terreno do Vela Latina, a reformada Adelina Barroso, a queixar-se de nunca mais ter conseguido alugar o espaço – ela mora numa barraca anexa. E o Diário do Nordeste, jornal com sede em Fortaleza, tentou reconstituir o caso com a ajuda da polícia, apesar de o delegado que o investigou ter, entretanto, falecido.
Em 2024, Militão pode progredir para o regime semiaberto – é-lhe concedida hipótese de trabalhar fora da penitenciária, mas terá de voltar todas as noites a Pacatuba. Isso, no entanto, não o entusiasma, precisamente por ser “demasiado conhecido no Ceará”. Nem isso, nem voltar a Portugal, caso o estado brasileiro decida expulsá-lo após o cumprimento de 30 anos de cadeia, o tempo máximo de prisão no Brasil à época dos factos, como é comum nesses casos.
Em 2024, Militão pode progredir para o regime semiaberto – é-lhe concedida hipótese de trabalhar fora da cadeia, mas terá de voltar toda as noites à sua cela em Pacatuba
“”Portugal, como o Ceará, é demasiado pequeno para mim”, é o que ele costuma dizer”, conta a fonte próxima de Militão ao DN. O criminoso refere-se ao facto de ser também muito lembrado no país de nascimento. O ideal, na perspectiva de Militão, seria recomeçar a vida noutro estado do Brasil, onde não seria facilmente reconhecido, uma vez que, para lá do Ceará, a chacina de agosto de 2021 caiu no esquecimento, tantos são os crimes igualmente mediáticos no país.
Os três funcionários do Vela Latina que ajudaram o português, Raimundo Martins da Silva Filho (condenado a 132 anos de prisão), Leonardo Sousa dos Santos (120) e José Jurandir Pereira Ferreira (120), também continuam presos. Um quarto elemento, o cunhado de Militão e seu sócio na barraca, Manoel Lourenço Cavalcante, já progrediu para o regime semiaberto e trabalha numa confeitaria.
Militão contou à polícia em 2001 que planeou o crime por um mês e que o seu objetivo era pedir um resgate de um milhão de reais pela vida dos empresários, que tinham idades entre os 42 e os 57 anos, mas negou ter tido conhecimento do nível de crueldade utilizado pelos parceiros na execução das vítimas.
O português recebeu os compatriotas no aeroporto e levou-os diretamente para o Vela Latina, sem passarem no hotel, prometendo uma festa com mulheres e álcool.
Os quatro parceiros de crime invadiram então a barraca, simulando um assalto em que Militão se fez passar por vítima, disparando e agredindo com pauladas os portugueses, antes de os enterrarem em covas abertas na véspera e os cobrirem com betão. O arquiteto do plano, entretanto, saiu para levantar dinheiro com os cartões de crédito dos compatriotas, um deles, António Rodrigues, seu amigo de longa data.
Por 12 dias, os seis portugueses foram dados como desaparecidos até uma corporação do Corpo de Bombeiros do Ceará concluir, a 24 de agosto, o trabalho de escavação no piso da cozinha da barraca da Praia do Futuro. Dois dias antes, Militão foi preso a 1600 km do local, em Barra do Corda, no estado vizinho do Maranhão, quando planeava escapar para a Guiana Francesa. Os cinco criminosos foram acusados dos crimes de latrocínio (roubo seguido de morte), ocultação de cadáver e formação de quadrilha (grupo criminoso).
Absolvido, entretanto, de uma acusação de tráfico de drogas dentro da cadeia, Militão tem “consciência da dívida para com a sociedade e demonstra arrependimento”, diz o amigo do português. “Mas agora quer uma oportunidade de se ressocializar”.
“Ele não sucumbiu: estudou, trabalhou e vem até educando o filho, que também é estudioso e trabalhador, nas visitas regulares que recebe”, acrescenta. Diogo Miguel tem 20 anos – a mãe estava grávida à época do crime – e pensa viver em Portugal, país ao qual o pai não quer voltar jamais.
Correspondente em São Paulo
dnot@dn.pt
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